


Como se faz um homem: o design como canteiro de obras
Por: Guido Conrado
Guido Conrado é Mestre em Filosofia da Arte e Estética pela PUC-Rio. Professor de História da Arte da Faculdade de Design de Moda do Senai-Cetiqt. Coordenador do Curso de Bacharelado em Artes com Habilitação em Figurino e Indumentária do Senai-Cetiqt.
Uma discussão sobre o sentido ético do design e dos processos criativos no mundo contemporâneo.
Se buscarmos elencar elementos distintivos entre a arte e o design, certamente chegaremos, no mínimo, à constatação de que uma obra de arte é [ou pode ser – para agradar a Gregos e Troianos] desprovida de função, de utilidade e de que um produto de design não pode prescindir de sua instrumentalidade.
A funcionalidade, desde a crítica platônica à mimesis, serviu como modo de distinguir a arte dos demais ofícios produtivos. Saber qual a eficiência, qual a eficácia instrumental de um produto - o para que ele serve, de que modo realiza, e com que grau de eficiência, a função a que se propõe - é uma tarefa da qual o designer não pode declinar.
Não seria também de se espantar se, em algum momento, levantássemos a questão sobre qual a real instrumentalidade, qual a real eficiência do próprio design. Essa pergunta teria que ser respondida com uma investigação a respeito da função do design, ou, no mínimo, do que ele seria capaz de fazer. Uma pergunta válida e justa, tanto mais se considerássemos que é o tipo de pergunta com a qual o próprio design interrogaria outro produto humano qualquer.
Qual a funcionalidade do design? Essa é uma pergunta que o design deveria fazer a si próprio? Desde sua origem o design cumpre com o programa positivo das vanguardas construtivas do início do século XX. Estetizar o mundo, aposta a Bauhaus. O design surge como uma prática racionalizadora do mundo. Pôr as coisas em ordem, fazer com que tudo funcione melhor, ganhar tempo, espaço e conferir beleza. Por trás desse raciocínio está a esperança metafísica de "um mundo melhor" e "superior". Mas, teria cumprido o design sua promessa? Avaliado sob suas próprias premissas, teria cumprido com seu papel? Pensado em termos de produto, seria o próprio design um exemplo de projeto bem sucedido?
Basta olharmos nossas faculdades e os discursos correntes para nos convencermos de que, em algum lugar, o projeto parece ter desandado. Sobretudo se nossa principal defesa para o design é pensá-lo como função agregadora de valor aos itens de consumo. Trocamos a certeza ingênua da Bauhaus pela irrefletida certeza de nada esperar. O design deixou de questionar-se quanto ao seu lugar no mundo. E não estamos falando aqui de sua função, falamos do seu sentido.
Está bem, o design não vai salvar o mundo. Está certo, não há nada mesmo que possa vir a salvar o mundo. Não há nem para onde possamos levá-lo. Nem mesmo acreditamos na idéia de salvação, de bem, verdade, etc. Agora, será somente isso o que nos resta – que o design seja apenas um mero agente da sociedade de consumo? Ele vai ajudar a desenvolver a nossa indústria? Aumentar o nosso lucro? Converter-nos em números pomposos e festejáveis?
Pensando-o como mero auxiliar técnico do mundo da produção industrial ou de luxo, perdemos a dimensão propriamente ética da produção do designer. Não nos referimos a nenhuma norma moral, a códigos de ética ou coisas assim, mas ao que há de propriamente ético em seu fazer criativo: o fato de que seus produtos destinam-se aos seres humanos, não ao mundo como ente abstrato, mas aos seres humanos "espalhados sobre a face da Terra".
O que nos resta, então? Parece que a questão que se impõe ao design em nada difere dos problemas colocados para todo o fazer criativo no mundo contemporâneo, e esses problemas, longe de se reduzirem às questões sobre funcionalidade, utilidade e instrumentalidade, ou mesmo capacidade de se produzir novidades, dizem respeito ao lugar e ao sentido do fazer criativo no mundo contemporâneo.
Dizemos lugar, e com isso queremos dizer eticidade, não no sentido de uma teoria moral, mas no sentido do que acreditamos poder compreender como sendo um significado mais original do termo ethos. Erick Havelock, em seu “Prefácio a Platão”, ao tratar da questão, nos diz:
“O que serão, pois, os ethea? Originalmente, o vocábulo pode ter significado a “toca” ou o “esconderijo” de um animal; no grego posterior, evoluiu para o significado de comportamento-padrão pessoal, ou até mesmo caráter pessoal e, assim, em Aristóteles, forneceu a base para o termo “ética” (..) o vocábulo pode ter originalmente denotado o modo como um ser humano vivia no seu “esconderijo”. Se assim o for, ele poderia facilmente ter se ampliado para abranger os costumes do esconderijo humano, que constitui o lar e a família”.
Se acreditarmos na afirmação acima citada, podemos concordar que a pergunta sobre a eticidade de uma coisa qualquer reporta à questão sobre qual o esconderijo, o abrigo, o modo como um mundo ou um determinado recorte do mundo acolhe e abriga esta coisa. Perguntamos sobre o lugar e a intimidade que a referida coisa desfruta em relação ao mundo em geral ou ao recorte ao qual co-pertence.
Sendo assim, dois obstáculos se interpõem à nossa tarefa. Interpõem-se e ao mesmo tempo solicitam-nos, visto que toda a tarefa do pensar traduz-se, no final das contas, em uma experiência de solicitação (do latim, sollus – o todo – e citare – empurrar)2. Devemos pensar, então, sobre se há ainda algum lugar para nós, agentes criativos, no mundo contemporâneo.
Precisamos saber se há por onde nos possamos “mover” e também de que modo podemos ainda mobilizar o mundo. Não faremos isso de modo algum sem compreendermos que sentidos encerram nossas práticas e atividades criativas e, menos ainda, sem compreendermos o que, finalmente, podemos querer dizer por “mundo contemporâneo”.
Toda essa problemática somente se instaura porque durante o período moderno criar foi tomado como correlato de produzir novidades. O processo criativo estava sempre ligado ao novo e, após a Revolução Industrial, passou-se a ter o novo como desqualificador do antigo. Isso se fundava na idéia metafísica de progresso e nas promessas que a modernidade trazia para o Ocidente: o resgate dos valores superiores da razão e a razão como a luz que nos livraria das trevas da ignorância e que nos permitiria desocultar a verdade.
É fato que todas as promessas do mundo moderno fracassaram. A medicina, em seus avanços, não garantiu a saúde de todos, a produção em grande escala não garantiu que todos tivessem pão, o desenvolvimento dos meios de transporte encurtaram as distâncias entre os continentes, mas também nos permitiram destruir em dimensão planetária.
Fracassadas as promessas, põem-se sob suspeita seus fundamentos: a verdade, a justiça, o progresso, etc. Como, então, garantir a validade dos processos criativos se nem mesmo podemos acreditar na possibilidade de que algo de novo se erga sob o Sol? Vemo-nos lançados ao labirinto desértico do niilismo.
Perdidos em um labirinto, podemos para sempre andar em círculos. Isso não nos impede, entretanto, de tentarmos novamente, de fazermos novas apostas, de vislumbrarmos em uma passagem ou outra a possibilidade de salvação. Assim funcionavam aparentemente os fundamentos da razão.
Todavia, postos por terra esses fundamentos, suspensas as paredes do labirinto, o que nos resta é o deserto, em sua imobilizadora infinitude. Podemos seguir em qualquer direção, não há paredes nem obstáculos que nos detenham. Não há também, para onde quer que lancemos nosso olhar, qualquer segurança, qualquer aparente possibilidade de redenção. O deserto é o pior de todos os labirintos.
Encontramo-nos perdidos. A indústria em seu vigor técnico e mercantilista segue, no entanto, seu curso. Apropriando-se de nossos vazios, convence-nos de que somos essencialmente parte de suas engrenagens. No impensado de nossas ações, criar vira sinônimo de alimentar o mercado, de agregar valor aos produtos de consumo. Perdemos a noção de que o médium, tanto quanto o fim do processo de interação homem-objeto, não são o objeto, mas o homem.
Estamos em um colóquio de moda e ao longo de uma semana o termo “humano” aparecerá em seus variados aspectos, tomado sob a forma do consumidor, do produtor, do vendedor, etc. Mas será que em algum desses aspectos conseguimos encontrar ainda algo como um ser humano? Para quem e para quê verdadeiramente criamos?
Assim, retomamos aqui nossa pergunta propriamente ética: “para quê” e “para quem” não quer saber sobre a utilidade de nossas produções, mas sobre sua eticidade. Qual o lugar ocupado por nossas criações em meio aos homens? De que modo a humanidade se sente acolhida e acolhe aquilo que produzimos? Finalmente, qual o recorte de mundo – e se falamos de mundo, somente podemos falar de mundo humano – que se vê “produzido” por nossas produções? Na raiz de todas essas dúvidas está menos a questão sobre o que fazemos do que a questão sobre quem somos e sobre como nos fazemos.
Recebi recentemente, por ocasião do final do semestre letivo, um trabalho monográfico no qual a aluna apresentava algo como o corpo sendo um meio por intermédio do qual - a expressão era essa - “nós nos colocamos nas prateleiras da sociedade, para nos vendermos e para consumirmos os outros”. Não conheço o texto original de onde a aluna extraiu essa idéia, que vinha apoiada por uma citação, e não sei também que tipo de apropriação pode ter sido efetuada por ela, mas a possibilidade de o corpo humano vir a ser tomado como meio me obriga a formular a pergunta sobre o que haverá efetivamente para ser mediatizado se nos tornarmos nós mesmos, no final das contas, apenas meio.
Sim, porque é totalmente compreensível que um “eu sou”, no sentido do cogito cartesiano, prescinda das “mediações” do corpo para existir. Restaria saber, todavia, se sem o corpo, mesmo em Descartes, poderia existir ainda algum “nós somos”. É pelo corpo que nos tornamos aquilo que somos, por ele ingressamos na intimidade das coisas e gozamos da carnalidade do mundo.
A aparente razão porque a aluna, excelente aluna, diga-se de passagem, pode em seu trabalho, igualmente bom, pensar no corpo como simples médium para a “exposição” das subjetividades é o fato de termos acreditado no discurso da “técnica” e nos rendido ao seu modo de dispor do mundo, cuja força de apropriação transforma tudo, ao final de seu processo, apenas em matéria prima para o seu trabalho.
Assim, a árvore vira madeira, a rocha vira pedra, o homem vira engenheiro, lixeiro, médico, dentista, designer de moda e assim por diante. Trocamos, como diria Hannah Arendt, o “Quem” pelo “Que” e, neste processo, fica a pergunta sobre o quanto ainda resta de humano naquilo que ousamos chamar de homens. Temos os dados estatísticos, números e projeções, abstrações. Conseguimos contá-los, classificá-los, dividi-los em grupos e subgrupos, mas, de sua existência mesmo, nada sabemos e nem nos importa saber.
Corremos o risco de perdermos de vista o fato de que nossos produtos produzem mundos, mas não o mundo dos objetos que confeccionamos, e sim o mundo dos homens. Criar é uma atividade essencialmente política. O que difere a produção de uma máquina da produção de um homem não é a inumanidade da máquina, mas a humanidade do homem. Não se trata apenas de saber quem realiza melhor e mais rápido uma mesma atividade, mas que por trás do “organismo produtor” existe realmente uma vida, com histórias, fracassos, lágrimas e sorrisos.
A máquina é não-humana, o que não quer dizer que o homem seja um não-máquina. Não podemos nos definir negativamente a partir das competências e virtuoses dos mecanismos tecnológicos. Nossa pergunta sobre o processo criativo e, por extensão, sobre o design, como pergunta ética, trata do quanto de humano acolhemos em nossos processos. Não há nenhum problema em que usemos máquinas para produzir, o risco está em que deixemos de pensar como homens.
A funcionalidade, desde a crítica platônica à mimesis, serviu como modo de distinguir a arte dos demais ofícios produtivos. Saber qual a eficiência, qual a eficácia instrumental de um produto - o para que ele serve, de que modo realiza, e com que grau de eficiência, a função a que se propõe - é uma tarefa da qual o designer não pode declinar.
Não seria também de se espantar se, em algum momento, levantássemos a questão sobre qual a real instrumentalidade, qual a real eficiência do próprio design. Essa pergunta teria que ser respondida com uma investigação a respeito da função do design, ou, no mínimo, do que ele seria capaz de fazer. Uma pergunta válida e justa, tanto mais se considerássemos que é o tipo de pergunta com a qual o próprio design interrogaria outro produto humano qualquer.
Qual a funcionalidade do design? Essa é uma pergunta que o design deveria fazer a si próprio? Desde sua origem o design cumpre com o programa positivo das vanguardas construtivas do início do século XX. Estetizar o mundo, aposta a Bauhaus. O design surge como uma prática racionalizadora do mundo. Pôr as coisas em ordem, fazer com que tudo funcione melhor, ganhar tempo, espaço e conferir beleza. Por trás desse raciocínio está a esperança metafísica de "um mundo melhor" e "superior". Mas, teria cumprido o design sua promessa? Avaliado sob suas próprias premissas, teria cumprido com seu papel? Pensado em termos de produto, seria o próprio design um exemplo de projeto bem sucedido?
Basta olharmos nossas faculdades e os discursos correntes para nos convencermos de que, em algum lugar, o projeto parece ter desandado. Sobretudo se nossa principal defesa para o design é pensá-lo como função agregadora de valor aos itens de consumo. Trocamos a certeza ingênua da Bauhaus pela irrefletida certeza de nada esperar. O design deixou de questionar-se quanto ao seu lugar no mundo. E não estamos falando aqui de sua função, falamos do seu sentido.
Está bem, o design não vai salvar o mundo. Está certo, não há nada mesmo que possa vir a salvar o mundo. Não há nem para onde possamos levá-lo. Nem mesmo acreditamos na idéia de salvação, de bem, verdade, etc. Agora, será somente isso o que nos resta – que o design seja apenas um mero agente da sociedade de consumo? Ele vai ajudar a desenvolver a nossa indústria? Aumentar o nosso lucro? Converter-nos em números pomposos e festejáveis?
Pensando-o como mero auxiliar técnico do mundo da produção industrial ou de luxo, perdemos a dimensão propriamente ética da produção do designer. Não nos referimos a nenhuma norma moral, a códigos de ética ou coisas assim, mas ao que há de propriamente ético em seu fazer criativo: o fato de que seus produtos destinam-se aos seres humanos, não ao mundo como ente abstrato, mas aos seres humanos "espalhados sobre a face da Terra".
O que nos resta, então? Parece que a questão que se impõe ao design em nada difere dos problemas colocados para todo o fazer criativo no mundo contemporâneo, e esses problemas, longe de se reduzirem às questões sobre funcionalidade, utilidade e instrumentalidade, ou mesmo capacidade de se produzir novidades, dizem respeito ao lugar e ao sentido do fazer criativo no mundo contemporâneo.
Dizemos lugar, e com isso queremos dizer eticidade, não no sentido de uma teoria moral, mas no sentido do que acreditamos poder compreender como sendo um significado mais original do termo ethos. Erick Havelock, em seu “Prefácio a Platão”, ao tratar da questão, nos diz:
“O que serão, pois, os ethea? Originalmente, o vocábulo pode ter significado a “toca” ou o “esconderijo” de um animal; no grego posterior, evoluiu para o significado de comportamento-padrão pessoal, ou até mesmo caráter pessoal e, assim, em Aristóteles, forneceu a base para o termo “ética” (..) o vocábulo pode ter originalmente denotado o modo como um ser humano vivia no seu “esconderijo”. Se assim o for, ele poderia facilmente ter se ampliado para abranger os costumes do esconderijo humano, que constitui o lar e a família”.
Se acreditarmos na afirmação acima citada, podemos concordar que a pergunta sobre a eticidade de uma coisa qualquer reporta à questão sobre qual o esconderijo, o abrigo, o modo como um mundo ou um determinado recorte do mundo acolhe e abriga esta coisa. Perguntamos sobre o lugar e a intimidade que a referida coisa desfruta em relação ao mundo em geral ou ao recorte ao qual co-pertence.
Sendo assim, dois obstáculos se interpõem à nossa tarefa. Interpõem-se e ao mesmo tempo solicitam-nos, visto que toda a tarefa do pensar traduz-se, no final das contas, em uma experiência de solicitação (do latim, sollus – o todo – e citare – empurrar)2. Devemos pensar, então, sobre se há ainda algum lugar para nós, agentes criativos, no mundo contemporâneo.
Precisamos saber se há por onde nos possamos “mover” e também de que modo podemos ainda mobilizar o mundo. Não faremos isso de modo algum sem compreendermos que sentidos encerram nossas práticas e atividades criativas e, menos ainda, sem compreendermos o que, finalmente, podemos querer dizer por “mundo contemporâneo”.
Toda essa problemática somente se instaura porque durante o período moderno criar foi tomado como correlato de produzir novidades. O processo criativo estava sempre ligado ao novo e, após a Revolução Industrial, passou-se a ter o novo como desqualificador do antigo. Isso se fundava na idéia metafísica de progresso e nas promessas que a modernidade trazia para o Ocidente: o resgate dos valores superiores da razão e a razão como a luz que nos livraria das trevas da ignorância e que nos permitiria desocultar a verdade.
É fato que todas as promessas do mundo moderno fracassaram. A medicina, em seus avanços, não garantiu a saúde de todos, a produção em grande escala não garantiu que todos tivessem pão, o desenvolvimento dos meios de transporte encurtaram as distâncias entre os continentes, mas também nos permitiram destruir em dimensão planetária.
Fracassadas as promessas, põem-se sob suspeita seus fundamentos: a verdade, a justiça, o progresso, etc. Como, então, garantir a validade dos processos criativos se nem mesmo podemos acreditar na possibilidade de que algo de novo se erga sob o Sol? Vemo-nos lançados ao labirinto desértico do niilismo.
Perdidos em um labirinto, podemos para sempre andar em círculos. Isso não nos impede, entretanto, de tentarmos novamente, de fazermos novas apostas, de vislumbrarmos em uma passagem ou outra a possibilidade de salvação. Assim funcionavam aparentemente os fundamentos da razão.
Todavia, postos por terra esses fundamentos, suspensas as paredes do labirinto, o que nos resta é o deserto, em sua imobilizadora infinitude. Podemos seguir em qualquer direção, não há paredes nem obstáculos que nos detenham. Não há também, para onde quer que lancemos nosso olhar, qualquer segurança, qualquer aparente possibilidade de redenção. O deserto é o pior de todos os labirintos.
Encontramo-nos perdidos. A indústria em seu vigor técnico e mercantilista segue, no entanto, seu curso. Apropriando-se de nossos vazios, convence-nos de que somos essencialmente parte de suas engrenagens. No impensado de nossas ações, criar vira sinônimo de alimentar o mercado, de agregar valor aos produtos de consumo. Perdemos a noção de que o médium, tanto quanto o fim do processo de interação homem-objeto, não são o objeto, mas o homem.
Estamos em um colóquio de moda e ao longo de uma semana o termo “humano” aparecerá em seus variados aspectos, tomado sob a forma do consumidor, do produtor, do vendedor, etc. Mas será que em algum desses aspectos conseguimos encontrar ainda algo como um ser humano? Para quem e para quê verdadeiramente criamos?
Assim, retomamos aqui nossa pergunta propriamente ética: “para quê” e “para quem” não quer saber sobre a utilidade de nossas produções, mas sobre sua eticidade. Qual o lugar ocupado por nossas criações em meio aos homens? De que modo a humanidade se sente acolhida e acolhe aquilo que produzimos? Finalmente, qual o recorte de mundo – e se falamos de mundo, somente podemos falar de mundo humano – que se vê “produzido” por nossas produções? Na raiz de todas essas dúvidas está menos a questão sobre o que fazemos do que a questão sobre quem somos e sobre como nos fazemos.
Recebi recentemente, por ocasião do final do semestre letivo, um trabalho monográfico no qual a aluna apresentava algo como o corpo sendo um meio por intermédio do qual - a expressão era essa - “nós nos colocamos nas prateleiras da sociedade, para nos vendermos e para consumirmos os outros”. Não conheço o texto original de onde a aluna extraiu essa idéia, que vinha apoiada por uma citação, e não sei também que tipo de apropriação pode ter sido efetuada por ela, mas a possibilidade de o corpo humano vir a ser tomado como meio me obriga a formular a pergunta sobre o que haverá efetivamente para ser mediatizado se nos tornarmos nós mesmos, no final das contas, apenas meio.
Sim, porque é totalmente compreensível que um “eu sou”, no sentido do cogito cartesiano, prescinda das “mediações” do corpo para existir. Restaria saber, todavia, se sem o corpo, mesmo em Descartes, poderia existir ainda algum “nós somos”. É pelo corpo que nos tornamos aquilo que somos, por ele ingressamos na intimidade das coisas e gozamos da carnalidade do mundo.
A aparente razão porque a aluna, excelente aluna, diga-se de passagem, pode em seu trabalho, igualmente bom, pensar no corpo como simples médium para a “exposição” das subjetividades é o fato de termos acreditado no discurso da “técnica” e nos rendido ao seu modo de dispor do mundo, cuja força de apropriação transforma tudo, ao final de seu processo, apenas em matéria prima para o seu trabalho.
Assim, a árvore vira madeira, a rocha vira pedra, o homem vira engenheiro, lixeiro, médico, dentista, designer de moda e assim por diante. Trocamos, como diria Hannah Arendt, o “Quem” pelo “Que” e, neste processo, fica a pergunta sobre o quanto ainda resta de humano naquilo que ousamos chamar de homens. Temos os dados estatísticos, números e projeções, abstrações. Conseguimos contá-los, classificá-los, dividi-los em grupos e subgrupos, mas, de sua existência mesmo, nada sabemos e nem nos importa saber.
Corremos o risco de perdermos de vista o fato de que nossos produtos produzem mundos, mas não o mundo dos objetos que confeccionamos, e sim o mundo dos homens. Criar é uma atividade essencialmente política. O que difere a produção de uma máquina da produção de um homem não é a inumanidade da máquina, mas a humanidade do homem. Não se trata apenas de saber quem realiza melhor e mais rápido uma mesma atividade, mas que por trás do “organismo produtor” existe realmente uma vida, com histórias, fracassos, lágrimas e sorrisos.
A máquina é não-humana, o que não quer dizer que o homem seja um não-máquina. Não podemos nos definir negativamente a partir das competências e virtuoses dos mecanismos tecnológicos. Nossa pergunta sobre o processo criativo e, por extensão, sobre o design, como pergunta ética, trata do quanto de humano acolhemos em nossos processos. Não há nenhum problema em que usemos máquinas para produzir, o risco está em que deixemos de pensar como homens.
Referências
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: Vértice e Ruptura do Projeto Construtivo Brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1999.
DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Editora Perspectiva S/A, 1995.
HAVELOCK, Eric. Prefácio a Platão. Campinas: Editora Papiro, 1996.
HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70, 1992.
__________ Ensaios e Conferências. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1999.
__________ O Primado da Percepção e Suas Conseqüências Filosóficas. Campinas: Editora Papyrus, 1990.
__________ O Visível e O Invisível. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento Da Tragédia. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1998.
VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade. Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-Moderna. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002.
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